Entrevista a José Galvão Teles

(...) Decorridas mais de oito décadas de vida, mantém ativas as rotinas profissionais na José Galvão Teles, Engenheiros. Lda., cultiva um raciocínio ágil, informado, com uma boa dose de bonomia, algumas vezes severo e crítico, quando o impõe a autoridade da sua experiência.
Projetista de AVAC desde 1980, José Galvão Teles oferece nesta entrevista uma visão panorâmica sobre as mudanças no setor, os desafios que se colocam e as dificuldades atuais do setor perante normativas que considera desalinhadas com a realidade.
Entrevista e fotor por Carlos Saraiva
Reli uma resenha histórica que assinou na última edição da nossa revista, sobre a evolução do sector nos últimos 50 anos. Considera que o motor de desenvolvimento no sector do AVAC foi mais o ensino, ou, sobretudo, o mercado?
Diria que foram os dois. Como escrevi no texto a que se refere, o ensino conheceu uma evolução muito grande nesse período. Quando me formei em engenharia mecânica, em 1966, no Técnico, o curso já refletia essa evolução liderada, particularmente, pelo Professor Gouveia Portela. No entanto, também no ISEL existia um desenvolvimento com uma componente muito forte na relação entre o ensino da eletricidade e a mecânica. Ou seja, começou nesses anos uma evolução muito marcante por parte do ensino, pois antes era tudo muito circunscrito ao estudo das caldeiras e de outros equipamentos industriais. A engenharia mecânica era muito mais virada para a parte do processo e da manutenção. Em paralelo com esta mudança que começava a verificar-se no ensino, as empresas, os instaladores que numa fase inicial eram, sobretudo, distribuidores de materiais produzidos dos Estados Unidos, começaram a aparecer com uma vertente mais técnica, muitas vezes apoiada em visitas ao estrangeiro. A área de projeto começa a desenvolver-se com uma geração de engenheiros independentes do instalador que começou a saber projetar e também a comprar, que é muito importante. E essa geração foi-se tornando independente do instalador, embora agora estejamos numa fase em que há, novamente, uma tendência para uma certa ditadura do instalador, para fechar o circuito e diminuir a intervenção de terceiros, digamos assim…
O mercado nesses inícios estava muito mais virado para projetos em edifícios bancários. Por exemplo, o Pinto Magalhães no Porto, que depois passa a BPA e dará mais tarde origem à SONAE. Nesse banco, o sistema de ventilação usava um volume de ar variável, que era afinado por técnicos que vinham da Suíça, ou seja, como foi costume durante anos, com os instaladores e projetistas estrangeiros a tentarem remeter-nos para uma posição menor. Isso depois mudou com a qualidade de projetistas que se foram desenvolvendo em Portugal, em termos de conceção. Nos últimos 20 anos isso foi bem notório, embora tenhamos perdido em termos de execução, pois cada vez é mais difícil executar bem.
No mesmo texto que referi, o senhor engenheiro sugeria que este desenvolvimento, pelo menos nas duas primeira décadas, foi assegurado com os profissionais disponíveis. E os que estavam disponíveis eram os engenheiros eletrotécnicos. Esta é uma área mais da engenharia eletrotécnica ou mais da engenharia mecânica?
O peso inicial da engenharia eletrotécnica surge por razões históricas. Lembro-me do Camacho Simões, o Sá Borges e outros que, um pouco por acaso, se envolveram nisso. Já havia, na altura, uma componente importante de automação, embora diferente do que é hoje, em que os engenheiros eletrotécnicos estavam mais à vontade. Nessa fase – e agora voltamos ao tema da pergunta anterior, quando me fala do mercado – havia uma grande influência dos Estados Unidos e estes projetistas alimentaram-se muito dessa matriz técnica norte-americana.
Mas podemos dizer que a ‘engenharia natural’ do AVAC é a mecânica?
Sim, mas também a Química. No meu tempo, na Universidade do Porto, o Guedes de Carvalho foi uma das grandes figuras na parte da mecânica de fluidos através da química, porque o processo envolve muito a dimensão do transporte de líquidos e condições ambientais, tal como hoje. Os eletrotécnicos em Portugal nos anos 50/60 envolveram-se então em projetos de grandes obras dessa época, como os bancos ou o Hotel Ritz. Porém, a partir de certa altura, os engenheiros mecânicos passara a ficar ‘donos’ do processo. A grande diferença é que o AVAC não é só regulamentos, nem apenas receitas para passagem de cabos. É necessário conceber e planear.
O acrescento do R [Refrigerantes] na sigla do AVAC é um apêndice ou tem um peso técnico determinante nas instalações?
É semelhante ao que se discute hoje com os motores a combustão ou o hidrogénio. São coisas novas que se minimizavam porque não havia atenção nem foco para as consequências. Quem vende quase nunca se preocupa com o fim de ciclo de vida do produto, e muitas vezes, as empresas têm interesses que não são necessariamente os mesmos que as sociedades ou os utilizadores. É verdade que nos tempos atuais já há uma consciência diferente em muitos sectores da sociedade e até do ponto de vista político. No entanto, certos sectores industriais e empresariais, dada a sua dimensão e poder, continuam a condicionar as decisões relevantes.
Que ‘fotografia’ faria do sector do AVAC?
No meu caso faria uma ‘Polaroid’ que demonstra uma evolução no bom caminho, embora continuemos com o problema de não ser o aspeto técnico a dificultar, mas sim uma parte comercial que é, em muitos casos, uma condicionante negativa. E também alguma rigidez da regulamentação que se vai produzindo a nível europeu e que é destrutiva na maior parte das vezes, em lugar de se regulamentarem e de se imporem coisas corretas.
... falemos então do tal ‘elefante na sala’ que é a regulamentação, nomeadamente a nova Diretiva de Desempenho Energético dos Edifícios, que continua muito impopular entre os agentes do sector. Aliás, o senhor até lhe chama “kafkiana”. Ora, se bem me recordo, a literatura do Franz Kafka [escritor checoslovaco, 1883-1924] era de facto labiríntica, misteriosa e complexa. Um inferno, na verdade…O que é que considera ‘kafkiano’ na legislação?
No caso do AVAC, a regulamentação parece ser feita para génios e, além disso, muito virada para o centro da Europa, onde as condições geotérmicas são completamente diferentes das que se registam no sul da Europa. O nosso clima não tem muito a ver com os países do norte ou do centro da Europa. Uma das coisas boas que aprendi quando me formei no Técnico e depois fui completar os estudos para o Imperial College, em Londres, foi o pragmatismo anglo-saxónico. Eles são práticos e trabalham para a realidade. Em Portugal, a maior parte da legislação é labiríntica e por isso ‘kafkiana’. E, no caso da Europa, a legislação está a ser contraditória. Os advogados dizem sempre que uma pessoa pode afirmar uma coisa e o seu contrário sem perder a razão. A nível da engenharia precisamos de coisas simples, práticas e verdadeiras. Não no aspeto da receita, mas sim para saber com o que se conta. Além disso, a legislação está constantemente a mudar ao sabor de governos. É como na política. Muda o titular do ministério, muda o nome, muda o papel timbrado, muda o endereço de email… (...)
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